sexta-feira, 8 de agosto de 2008

No tribunal de meu pai - Isaac Bashevis Singer (2)




Contando as estórias vividas por ele em sua infância na Polônia, Singer nos revela várias faces da cultura judaica, ao mesmo tempo em que nos apresenta cenas do cotidiano vivido na rua Krochmalna e dos tempos difíceis da Primeira Grande Guerra.

Confirmando a impressão do início da leitura deste livro (post de 10/07), o que certamente nos encanta é a forma como tudo é contado: o autor consegue nos envolver, nos transportar aos seus olhos de criança, ao mesmo tempo em que intercala pensamentos daquele que era então, ao escrever suas lembranças, ao voltar ao seu passado.

Dentre tantas passagens, como as dos capítulos Por que grasnavam os gansos, A lavadeira, Fome, apenas como um exemplo da prosa do autor, vou destacar a do capítulo Um dia de delícias, em que observamos as alegrias e as apreensões de Singer menino, ao burlar algumas regras familiares:


Pois imagine, leitor, a alegria indescritível que senti certa feita ao ganhar um rublo - ou seja, cem copeques! [...]


Eu sabia que se eu ficasse em casa meus pais dariam fim àquele rublo. [...]


Tomei o rumo da Krochmalna. Estava caminhando quando, de repente, senti um prego dentro da bota. A cada passo que eu dava, ele me cutucava. Como aquele prego fora parar ali justo naquela hora? Atravessei o portão de uma casa. Ali não havia cães nem porteiros. Tirei a bota. Em seu interior, varando a palmilha, despontava um prego pontiagudo. Forrei a bota com um pouco de papel e retomei a caminhada. Ai, como dói andar quando, a cada passo que dás, um prego te fere o pé! E como deve ser dolorido ter de deitar numa cama de pregos na Geena! Naquele dia eu cometera muitos pecados. Não tinha dito nenhuma bênção antes de comer os doces, não havia dado nem um groschen de meu dinheiro aos pobres. Só cuidara de minha gulodice.

A volta para casa levou aproximadamente duas horas. Enquanto caminhava, eu era assediado por todo tipo de pensamentos aterrorizadores. Uma coisa horrível talvez houvesse acontecido em casa. Talvez eu não estivesse mentindo quando disse ao cocheiro que era órfão, tendo perdido meus pais no exato instante que havia lhe dito aquilo. Talvez eu não tivesse mais pai, nem mãe, nem casa. Talvez meu rosto houvesse se modificado, como o do homem no livro de histórias, e quando eu chegasse em casa papai e mamãe não me reconheceriam. Tudo era possível!
(p. 136-137)



Além disso, o autor consegue colocar em em prática o que ele próprio teoriza, trazendo-nos o prazer de ler como quem ouve um "causo" e sempre espera pelo próximo:

O contador de histórias e poeta do nosso tempo - e de todas as épocas - deve entreter o espírito, em vez de apenas pregar ideais sociais ou políticos. Não há Paraíso possível para leitores entediados, nem tampouco desculpa aceitável para a literatura aborrecida, incapaz de intrigar o leitor, de animá-lo, dar-lhe a alegria e o refúgio que a verdadeira arte sempre propicia. (contracapa do livro)


Um mosaico de uma época passada,
Um retrato de comportamentos humanos sempre presentes.


Outros dados da obra:

Escritor: Isaac Bashevis Singer (1904-1991)
Mais informações sobre o autor no site do Prêmio Nobel e clicando aqui.
Título original: In my father's court
Publicado em inglês em 1966
Tradutor: Alexandre Hubner
Companhia das Letras, 2008, 356 p.

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